Autor (es):
Victor de Albuquerque Feijó Fonsêca
Documento original aqui
Ano de publicação
2014
Introdução
O enfoque do presente estudo consiste em uma breve abordagem descritiva do sistema judiciário formal cabo-verdiano, de forma a possibilitar uma noção inicial de sua organização e das suas características gerais. O termo formal em epígrafe no título deste ensaio decorre – conforme se pretende demonstrar – da falta de homogeneidade da jurisdição institucional de Cabo Verde e da consequente pluralidade de meios consuetudinários alternativos de resolução de conflitos.
Com efeito, busca-se aqui relatar a existência de um verdadeiro “pluralismo jurídico” em Cabo Verde, caracterizado por formas híbridas de resolução de determinadas classes conflitais, que por sua vez são ocasionadas principalmente pelo alcance limitado e heterogêneo deste sistema, tanto em termos territoriais quanto em termos sociais.
Por fim, a título exemplificativo, serão descritos alguns dos métodos alternativos usuais em Cabo Verde, tais como tribunais consuetudinários desenvolvidos sob os ditames da Igreja Católica e o comportamento peculiar de agrupamentos comunitários característicos denominados Rebelados, presentes notadamente na Ilha de Santiago, que constituem fortes argumentos em favor da mencionada existência de um “pluralismo jurídico” no Estado cabo-verdiano.
A fim de concretizar os objetivos descritos, será utilizada como referência básica o Relatório elaborado a partir de um projeto de investigação referente aos “Mecanismos de resolução de litígios nos Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa)”, concebido no âmbito da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, de autoria do ilustre Professor Armando Marques Guedes, em conjunto com discentes desta mesma Universidade, como resultado de uma visita de estudo ao Estado de Cabo Verde realizada entre Agosto e Setembro de 2000. Complementarmente, também servirá como fonte bibliográfica o capítulo de um estudo, realizado pelo mesmo Professor supramencionado, referente à organização judiciaria cabo-verdiana e ao pluralismo jurídico já apontado como objeto de elucidações do presente estudo, sem prejuízo da utilização de demais referências que se façam relevantes para a pretensão idealizada por esta investigação.
A Organizaçao Judiciária formal em Cabo Verde
O sistema judiciário de Cabo Verde é caracterizado basicamente por duas instâncias jurisdicionais, estas representadas pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), como instância superior, e pelos Tribunais de Comarca, como órgãos de 1ª. Instância.
Paralelamente àquela organização, também existe no Estado cabo-verdiano uma Justiça Militar, representada por um tribunal que funciona de forma autônoma e independente dos órgãos da justiça comum, em que pese as suas decisões serem passíveis de recurso e o consequente controle por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
Ainda, podem ser citados também como integrantes da malha judiciária comum de Cabo Verde tribunais aduaneiros e fiscais localizados em alguns concelhos, em que pese a sua característica de especialidade possa ser contestada, conforme se tentará demonstrar.
Passemos primeiramente, portanto, à análise da Justiça Comum cabo-verdiana, para que posteriormente seja pormenorizada a autônoma Justiça Militar.
A justiça comum cabo verdiana
A justiça comum de Cabo Verde é composta basicamente pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e por diversos Tribunais de Comarca que se encontram espalhados pelas ilhas que integram o arquipélago cabo-verdiano. Em que pese possam ser encontrados em algumas comarcas maiores juízos dotados de uma certa especialidade funcional, a regra no Estado de Cabo Verde é de que não existam – à exceção do Tribunal Militar – tribunais especializados. Mesmo os tribunais aduaneiros e fiscais de que se tratou anteriormente não podem ser considerados como verdadeiramente especiais tendo em vista que, na prática, operam como os demais tribunais da justiça comum, não sendo o simples fato de se situarem em prédios apartados dos demais tribunais um fundamento suficiente para os definir como juízos especializados.
Ainda sobre a ausência de especialização por parte dos tribunais cabo-verdianos, há que se ressaltar que não existe – na prática – uma separação entre as fases processuais de declaração e execução, sendo que ambas as fases estão concentradas no mesmo juízo.
Conforme mencionado acima, são os Tribunais de Comarca que exercem a primeira instância jurisdicional de acordo com a organização judiciária cabo-verdiana formal vigente. Tais tribunais são órgãos singulares e encontram-se subdivididos em classes em função da matéria e do valor da causa – quer se tratem de ações de natureza cível – ou da medida da pena – em se tratando de ações de natureza penal.
A competência dos Tribunais de Comarca abrange em tese todas as causas que não estejam abrangidas pelas competências do Tribunal Militar e do Supremo Tribunal de Justiça. Ainda, é importante ressaltar que os Tribunais de 1ª instância podem decidir cautelarmente, muito embora tais decisões sevam ser submetidas ao controle do órgão competente, o que lhe retira substancialmente o caráter da celeridade.
No que tange ao papel desempenhado pelo Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, cumpre primeiramente ressaltar a sua grande amplitude. Com efeito, a competência deste tribunal superior abrange matérias das mais diversas naturezas, tais como as relacionadas às causas eleitorais, fiscais, administrativas, comerciais, penais, entre outras.
A Justiça Militar Cabo-Verdiana
Conforme já relatado na introdução deste capítulo, a Justiça Militar em Cabo Verde funciona de maneira autônoma. Ela é composta apenas por um único Tribunal Militar localizado na cidade da Praia e sua competência abrange as causas que envolvam crime de natureza essencialmente militar, sendo estes definidos pelo Código de Justiça Militar cabo-verdiano.
Os juízes que compõem este tribunal devem impreterivelmente ser integrantes do quadro permanente de oficiais das Forças Armadas cabo-verdianas, sendo nomeados por despacho do Ministro da Defesa Nacional, chefe administrativo do Ministério a que o Tribunal Militar está subordinado. Em que pese a sua completa autonomia funcional, é importante referir que, em regra, as decisões proferidas pelo Tribunal Militar estão sujeitas à revisão posterior por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
Uma questão importante prende-se à crítica que é feita com relação à existência deste Tribunal Militar e de seu funcionamento autônomo ao sistema judiciário comum, tendo em vista que esta favorece uma tendência corporativista que não coaduna com os ditames de um perfil democrático de Estado.
Não obstante a pertinência da crítica formulada, há de se recordar o quanto mencionado acerca do excesso de funções do Supremo Tribunal de Justiça e do consequente aumento deste acúmulo de competências caso o Tribunal Militar deixasse de existir em Cabo Verde, posto que a transferência de suas funções para aquele tribunal seria uma consequência natural de sua extinção.
O “Pluralismo Jurídico” Em Cabo Verde
Após a breve descrição, ainda que extremamente sucinta daquilo que se denominou de Organização Judiciária Formal, convém atentar para a questão da falta de implementação e homogeneidade por parte do sistema judiciário institucionalizado e das consequências que isto acarreta na coexistência de meios alternativos não relacionados diretamente com o sistema judiciário.
Com efeito, um dos problemas mais relevantes quanto ao déficit de implementação do sistema judiciário cabo-verdiano dizem respeito a aspectos socioculturais que fogem ao controle efetivo da Administração estatal. Em verdade, muitos nacionais cabo-verdianos preferem se valer de formas híbridas de resolução de conflitos, alimentados sobretudo por uma descrença na legitimidade da jurisdição estatal, que efetivamente não consegue alcançar o território cabo-verdiano em sua totalidade. Ainda, o sistema jurídico formal cabo-verdiano não consegue abarcar todas questões tidas como essenciais por boa parte da população.
A ausência de instâncias extrajudiciais institucionais de certo colabora com a notável recusa de uma parcela significativa da população de se utilizar do aparato estatal para solucionar os seus litígios. Corroborando com esta idéia, não obstante o seu aspecto curioso, urge referir que no entendimento popular, o acionamento do Poder Judiciário por uma das partes pode ser considerado uma grave ofensa à outra, o que fatalmente resultará no aumento de tensões entre as mesmas.
Como consequência desta ausência ou déficit de atuação do sistema judiciário formal, foram se desenvolvendo formas alternativas de condução de litígios que detêm fundamental importância na cobertura de questões não abrangidas pelo aparato jurisdicional. A atuação destas instâncias para-judiciais, vale ressaltar, contribui ainda de forma significativa para o descongestionamento dos tribunais estaduais.
Uma destas instâncias para-judiciais de que ora se referencia é a Direção-Geral do Trabalho, órgão pertencente ao Ministério do Emprego, Formação e Integração Social e que tem por função coordenar a execução de medidas relacionadas às relações e condições de trabalho. Este órgão possibilita a instauração de um processo administrativo para uma tentativa de conciliação das partes envolvidas sem que seja necessário invocar um tribunal de 1ª instância. Contra o despacho proferido pela Direção-Geral do Trabalho contudo, cabe recurso para um Tribunal de Comarca.
Outra manifestação do pluralismo jurídico em Cabo Verde associa-se com o papel desempenhado por algumas entidades da Igreja Católica que se pautam em critérios adotados pelos ensinamentos canônicos para promover uma tentativa de conciliar e dirimir conflitos basicamente de natureza familiar, tais como as disputas familiares e questões ligadas aos lações matrimoniais ou tutela de menores. Estas instituições, denominadas de “Tribunais de Família”, atuam sobretudo em zonas rurais.
Ainda, há que se ter em vista que muitas pessoas, para não dizer a maioria delas, procuram formas um tanto excêntricas de resolução de conflitos, ligadas à rituais sobrenaturais e práticas de magia, que são detentoras de grande fé e crença por aqueles que as procuram. Tais práticas, em que pese a ausência de parâmetros jurídicos e de critérios de justiça, devem ser levados em consideração para a constatação do pluralismo jurídico cabo-verdiano dado a sua relevância e ampla aceitação popular.
Les Wathinotes sont soit des résumés de publications sélectionnées par WATHI, conformes aux résumés originaux, soit des versions modifiées des résumés originaux, soit des extraits choisis par WATHI compte tenu de leur pertinence par rapport au thème du Débat. Lorsque les publications et leurs résumés ne sont disponibles qu’en français ou en anglais, WATHI se charge de la traduction des extraits choisis dans l’autre langue. Toutes les Wathinotes renvoient aux publications originales et intégrales qui ne sont pas hébergées par le site de WATHI, et sont destinées à promouvoir la lecture de ces documents, fruit du travail de recherche d’universitaires et d’experts.
The Wathinotes are either original abstracts of publications selected by WATHI, modified original summaries or publication quotes selected for their relevance for the theme of the Debate. When publications and abstracts are only available either in French or in English, the translation is done by WATHI. All the Wathinotes link to the original and integral publications that are not hosted on the WATHI website. WATHI participates to the promotion of these documents that have been written by university professors and experts.